Saturday 22 October 2011

DE BICICLETA A DISTRIBUIR AS SOBRAS DOS RESTAURANTES


Re-food. De bicicleta a distribuir as sobras dos restaurantes

Por Clara Silva, publicado em 22 Out 2011 - 02:00 | Actualizado há 14 horas 32 minutos

A associação criada por um americano dá comida a 70 famílias das Avenidas Novas, em Lisboa

Hunter Halder, 60 anos, entra pela porta das traseiras do restaurante O Polícia como se estivesse numa operação clandestina. Nas mãos leva tupperwares vazios que deixa num armário de alumínio rente ao chão. Pouco tempo depois, Maria de Jesus, a cozinheira, aparece com outras caixas na mão, ainda a fumegar. “Olá mister. Ajude-me aqui que hoje há muita coisa.”

Arroz de pato, chouriço, bacon, feijão verde, batatas fritas e até uma manga arranjada empilham-se no balcão. “São coisas que sobraram do almoço. Dantes ia tudo para o lixo, era um exagero. Deitávamos coisas fora que ainda podíamos comer, mas temos de pensar no bem- -estar dos outros”, diz a cozinheira. Pela porta das traseiras vão entrando outras empregadas para o turno da noite do restaurante e todas cumprimentam Hunter: “Então mister, está bom?” O americano responde num português cheio de sotaque – “Cheguei a Portugal em 1991, sem falar uma palavra. Agora sei 14”, dir-nos-ia mais tarde entre gargalhadas.

Desde 9 de Março que o consultor norte-americano recolhe as sobras de comida dos restaurantes da freguesia de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, para entregar às famílias que precisam. “E são cada vez mais.”

A partir das 19h00 começa a recolha de bolos e salgados nas pastelarias da zona, uma delas a conhecida Versailles. Hunter pedala numa bicicleta com dois cestos, um à frente e outro atrás, tapados por um plástico amarelo. “Ele é maluco a pedalar, vai a toda a velocidade, às vezes nem olha para o sinal”, diz-nos um fotógrafo espanhol da Reuters que há duas semanas está a fazer um trabalho sobre a Re-food 4 Good. Foi esse o nome que Hunter decidiu dar à associação que “quer combater a fome urbana através das sobras de comida”.

Antes de se dedicar a 100% à Re-food, o seu “bebé de sete meses”, Hunter geria uma empresa de team building. “Inventava actividades que tinham efeitos no comportamento das pessoas. As empresas queriam sempre karts ou paintball, mas eu inventava outras coisas que as tirassem da sua zona de conforto.” Com a crise, “as empresas cortaram nessas actividades, e eu e a economia decidimos que não ia continuar neste negócio”.

Foi depois de conhecer a campanha do piloto da TAP António Costa Pereira que Hunter decidiu criar a Re-food, que esteve para se chamar Pão Nosso. “Ele chateou o governo acerca do desperdício de comida em restaurantes e conseguiu mudar o paradigma com a ASAE e com as associações de restauração.” Até 10 de Dezembro do ano passado, os restos dos restaurantes tinham, por lei, de ir para o lixo e não podiam ser aproveitados nem pelas instituições de caridade.

RECOLHER OS RESTOS “Esta sopa da pedra é para mim ou é para o projecto?”, pergunta Hunter à dona do pronto-a-comer Entre Pães. A sopa tem um aspecto delicioso e é despejada para um tupperware vazio. “Preciso de mais caixas, Hunter, quando puder traga-me.” Até às 21h30, vários restaurantes da Avenida Conde de Valbom vão entregando a comida que sobrou. No restaurante A Presidente, o dono limpa o chão com uma esfregona e não repara que Hunter está à espera no balcão, apesar do seu aspecto extravagante, com um chapéu branco e fato cinzento. “Olhe, hoje não tenho nada para si”, diz quando finalmente repara na sua presença. “Então é porque está tudo bem, bons negócios e até amanhã”, responde Hunter. Já na bicicleta, conta--nos que é cada vez mais difícil recolher comida: “Os restaurantes tentam preparar as refeições de modo a não terem sobras, mas é impossível prever isso.”

MÃOS À COMIDA Os tupperwares chegam, muitos deles já frios, a uma antiga loja de congelados, como se lê no toldo. Lá dentro, três voluntárias preparam os sacos de comida para as famílias. “Temos aqui na parede uma lista com o nome das famílias [são 20], o número de pessoas do agregado familiar [ao todo são 76 pessoas] e o número de crianças [30]”, explica Joana Pizarro Miranda, uma das voluntárias. “À frente temos algumas condicionantes, por exemplo filhos que só comem carne, diabéticos que não podem comer fritos ou pessoas que só querem comida às terças e quintas.” Joana tem 48 anos e está desempregada. Dois dias por semana, ajuda na Re-food e traz os três filhos, o mais novo o Lourenço, de 9 anos. Numa bicicleta para miúdos, Lourenço não se importa de estar a perder o jogo do Benfica. “Quer dizer, de vez em quando vou ao café espreitar o resultado. Mas ajudar as pessoas que precisam é mais importante. Vou recolher comida com o Hunter e de vez em quando ajudo aqui a pôr as sopas nos sacos.”

Francisca Oliveira, uma publicitária de 25 anos, também é voluntária duas vezes por semana, depois do trabalho. “A lista das pessoas que precisam de comida é-nos dada pela igreja, pelas farmácias ou por vizinhos do bairro que dizem, por exemplo, que se calhar aquela senhora do 5.o andar precisa. Há cada vez mais gente a pedir comida, pessoas normais, muitas delas que têm vergonha de que os vizinhos saibam e temos de deixar o saco de comida à porta de casa.”

MARIAS CLANDESTINAS São as “Marias Clandestinas”, como lhes chama Hunter. “Sim, havia uma senhora assim, tínhamos de deixar num alguidar no quintal e era lá que ela também deixava os tupperwares vazios”, diz Maria do Rosário, de 54 anos. A economista ajuda na entrega dos sacos da comida, que é feita nas traseiras da estação de Entrecampos. “Se tenho um carro grande onde cabe a comida, não me custa nada fazer algo em prol dos outros, se não for assim não vamos lá.”

FRIGORÍFICOS NA RUA Apesar de a Re- food ter cada vez mais voluntários (agora são perto de 80), tem um grande problema para resolver. “Só estamos nesta loja de congelados até ao fim do mês”, conta Joana. “Quem alugava o espaço emprestou-nos temporariamente, mas há duas semanas tivemos uma ordem de despejo e passámos uma noite com os frigoríficos na rua. Precisamos de um espaço.”
Para os voluntários, o ideal seria um espaço maior onde pudessem cozinhar. “Os últimos sacos, muitas vezes, só vão com pão e salgados e era bom que tivéssemos um sítio onde pudéssemos cozinhar uma panela de sopa ou uma massa para acompanhar os salgados.” Hunter diz que o projecto é ambicioso e que, para isso, vai precisar de centenas de voluntários. “A ideia é expandirmo-nos para outras zonas, como um franchising, e tornar Lisboa a primeira cidade do mundo com zero desperdício e zero fome urbana.”