A minha francesinha é melhor do que a tua?
Parece ser comum a resposta em jeito de confissão: "Já comi mais". Francesinhas, dizemos, que por estes dias conhecem a ribalta à boleia da sua recente eleição, pelo site AOL Travel, como uma das dez melhores sanduíches do mundo - Rui Moreira "desvaloriza" essa eleição como "redundante": a distinção merecida seria ser "a melhor do mundo", brinca. Afinal, no Porto, "todos já o sabiam": na cidade-mãe, a francesinha é um dos ex-líbris gastronómicos - apreciada por locais e, pelo menos, procurada por visitantes que não querem deixar a cidade sem a experimentar, inclusive estrangeiros: quem nunca viu anunciada little french girl à porta de cafés ou restaurantes nunca calcorreou as ruas portuenses.
E é com a tradução little french girl (ou little frenchie) que o AOL apresenta a francesinha como uma das melhores sanduíches do mundo, a par de outras vindas da China ou do México, da Índia ou Dinamarca. A genealogia francesa é (inevitavelmente) referida, o antepassado croque monsieur é (devidamente) distinguido, mas a francesinha, escrevem, é como se fosse uma versão deste em "esteróides". Esquecem-se do nome do emigrante português, Daniel da Silva, que, em meados do século XX, de regresso a "casa", o "injectou" com os "gostos portugueses" - a sanduíche francesa de fiambre e queijo foi acrescentada de bife, salsichas e linguiça, "coroada" com queijo derretido e suavizada com molho de "tomate e cerveja".
Tornou-se, assim, uma super-sanduíche (montada no prato, para comer com garfo e faca), tanto que do lanche, o seu território original, rapidamente passou para a ceia e agora até se faz refeição - sobretudo quando acompanhada de batatas fritas e ovo, que a fazem "especial" (e esta é a mais comum das "variações" da francesinha: há-as com camarão, com outras carnes, até vegetarianas).
E assim voltamos ao início - quem "já comeu mais" "acusa" esta combinação de não ser facilmente suportável durante muito tempo: o que a torna única e irresistível é também o que a torna um pecado para a linha, um peso para o estômago. No entanto, cair em tentação regularmente faz parte da rotina de quem a aprecia - acompanhada por cerveja é o casamento ideal. E quem a come regularmente sabe que aferir "a melhor francesinha" é uma questão "fracturante": normalmente a discussão reduz-se ao molho - o que há no molho de uma francesinha é um dos enigmas gastronómicos da cidade. Certo, certo é que todos parecem diferir, nem que seja um pouco, o necessário, enfim, para distinguir as francesinhas preferidas (e isso significa o locais onde são feitas).
A Fugas decidiu fazer um "inquérito" entre alguns portuenses e o resultado não foi um tira-teimas, é um roteiro informal pelas "melhores" francesinhas.
Manuel Serrão (empresário) | Duvália e Capa Negra
Pode não ser muito fiel a "uma" francesinha - que é como quem diz, a um local: "como em muitos sítios" -, mas Manuel Serrão não tem dúvidas de qual é a sua preferida. No caso, preferidas, porque todos os encómios são repartidos entre a Duvália e o Capa Negra. "São as melhores no Porto", afirma o empresário, que come francesinhas "todos os meses". "Confesso que já comi mais", reconhece, "mas a idade não perdoa". "Agora", prossegue, "porto-me melhor". Ou seja, explica, deita-se mais cedo - e as francesinhas comia-as sobretudo nas ceias que ajudavam a sustentar noites longas. É que comê-las antes de ir para a cama é proibido - "Ela é pesada, eu também sou pesado", brinca. E é uma sanduíche - "a melhor" na sua opinião -, não uma refeição. "Para ser bem apreciada deve ser comida ao lanche ou ceia", considera. "Talvez com batatas" possa substituir uma refeição, concede, sem grande convicção. Afinal, Manuel Serrão aprecia a francesinha a solo, isto é, sem batatas - mas com uma "cervejinha de pressão, Super Bock", a acompanhar. E sem o bife ou carne assada, que tira. O que para si conta mesmo são os molhos, as salsichas (têm de ser irrepreensíveis) e o queijo. São os ingredientes mágicos - e se normalmente se diz que o segredo das francesinhas está no molho, Manuel Serrão involuntariamente mostra que concorda: ele que até sabe fazer francesinhas, embora não as faça (e não é sequer pela "torradeira especial" que não tem) se fizesse, diz, teria apenas de ir buscar o molho. Contudo, não importam os ingredientes e as combinações: "Não devemos considerar a francesinha um prato típico", defende "porque não é um prato". "É uma sandes, rica e poderosa, que temos de saber cuidar".
Bento Amaral (chefe da Câmara de Provadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto) | Capa Negra
É "grande fã" das francesinhas e, por isso, lamenta não as comer "com a regularidade que gostava". Por uma questão "de saúde", e "para tentar manter minimamente a linha", Bento Amaral come "mensalmente" francesinhas - no Capa Negra, sobretudo, a sua preferida. O Fonteluz, em Matosinhos, também recebe as visitas do chefe da Câmara de Provadores do Instituto dos Vinhos do Douro e do Porto e normalmente mantém-se nesse circuito. "Como não como tantas vezes quanto isso, quero ter a certeza de que é boa", explica, embora também receba com bom grado recomendações de amigos. E boa, para si, é uma questão de "equilíbrio" no molho e na forma como o pão é torrado. Depois, claro que é importante a qualidade do recheio - do bife, da linguiça e da salsicha. O ovo dispensa ("já me parece um excesso" - mas, sem qualquer ortodoxia, reconhece que "depende do gosto"). De resto, gosta das francesinhas com tudo - batatas fritas ("a guloseima para além da guloseima"), doses extra de molho... Todavia, não deixa de considerar que a francesinha é "ela própria uma óptima combinação".
No final da adolescência, juventude, "era capaz de comer uma francesinha depois do jantar". Por estes dias, a francesinha é uma "sanduíche refeição", pela qual até abre uma excepção substituindo o vinho pela cerveja, de que não é grande apreciador. "Preta, de pressão" é a sua eleita. Preta porque tem um "gosto especial" por ela, de pressão pelo gás ("ajuda a limpar a boca"), pela vivacidade. A acompanhar com vinho teria de ser um branco, "intenso e aromado" - o picante da francesinha iria tornar mais agressivo o vinho tinto.
Ilda Figueiredo (eurodeputada) | Mon Ami
Apanhámos Ilda Figueiredo na Islândia, em visita do seu grupo de trabalho do Parlamento Europeu, mas a resposta à pergunta "qual a sua francesinha preferida?" sai pronta - uma ponte instantânea para Portugal. O Mon Ami, em Vila Nova de Gaia, merece a distinção da eurodeputada eleita pela CDU. O Capa Negra (Porto) também leva elogios. Sim, Ilda Figueiredo gosta de francesinhas, sobretudo da combinação do "queijo e do molho". "E esse é o problema", graceja. Afinal, é o que mais contribui para que seja "uma comida um bocadinho pesada"; por isso, não come muitas vezes. Já comeu mais, "quando era mais nova, há uns anos". Agora, só "de vez em quando", a "original, sem mais nada". É uma refeição: "francesinha e imperial".
Rui Moreira (presidente da Associação Comercial do Porto) | Gambamar
A surpresa vem no final, mas dura pouco. Depois de ouvirmos uma série de elogios à francesinha, perguntamos a Rui Moreira, quase por retórica, pensávamos nós, se a distinção à francesinha é merecida. "Não", é a resposta ouvida. Mas nem temos tempo de reagir porque a justificação vem em catadupa. "A distinção só não é merecida porque não foi eleita a melhor do mundo". Este reconhecimento, diz o presidente da Associação Comercial do Porto, é "redundante": "Todos nós já sabíamos que era uma das 10 melhores sanduíches do mundo".
E a melhor das melhores, na opinião de Rui Moreira, é a do Gambamar. "Gostava de saber o truque". Acredita que o que separa esta francesinha das outras é o tempo de preparação. "No Gambamar demora", reconhece, "nota-se que o aquecimento é mais lento, o pão fica, como se diz em inglês, crispy [estaladiço], não amolece com o molho". O molho que é importante - sem esquecer a "qualidade da carne" -, já que "é o que separa a francesinha do croque monsieur".
Por "razões de linha" - "ser magro exige sacrifícios", graceja - não come francesinhas muitas vezes, apesar de gostar muito. Mas é tudo uma questão de circunstâncias: por exemplo, a seguir ao futebol, conta, sabe bem uma francesinha com sangria - ou cerveja. Ao balcão. "Uma francesinha não se come à mesa", diz, "mas sim ao balcão à conversa com amigos" - associa-a ao "convívio social" e a um facilitador de consensos ("para chegar a um acordo rápido no grupo, pedem-se umas francesinhas"). "Não vou propriamente a restaurantes para comê-la como prato principal", revela, "apesar de agora haver muitos que a servem assim". Não tem dúvidas é de que a francesinha é uma das "três grandes embaixadoras gastronómicas portuenses" - juntamente com as tripas e o vinho do Porto.
Teresa Lago (astrónoma) | Gambamar
Ainda hoje se surpreende "como comia francesinha ao lanche". "Já fui fã intensíssima", confessa Teresa Lago. "Agora, nem refeição principal". O estômago já não aguenta, "é um pouco pesado, intenso". E a astrónoma está "mais frugal": "Agora é mais saladas e fruta". Recorda a última "tentativa desesperada" de comer uma francesinha, há mais de 20 anos, após o regresso de Inglaterra. "Acho que foi no Gambamar", reflecte. Desde então, nunca mais comeu uma, só "tem partilhado dentadinhas", quando está "acompanhada de alguém bastante mais novo".
Na altura em que era "frequentadora" das francesinhas, ia muito a um café em Vila Nova de Gaia, de que já não recorda o nome. Recorda, sim, as "francesinhas fora de série". E isto foi antes de ir para Inglaterra. Tem saudades, sim, das francesinhas, mas, novamente o estômago a interpor-se: "Não tenho é estômago". "Uma mistura daquelas, carnes, queijos, salsicha, linguiça..." E o molho. A comida para si agora é mais simples. "Para mim foi uma fase. Houve uma altura em que gostava de bifes grandes, agora já não". Embora, confessa, continue a ir regularmente às tripas e à feijoada. As francesinhas: crê que também é o molho que a afasta - e os camarões, em algumas. De qualquer forma, não a surpreende a distinção do AOL Travel. "Sei que é muito apreciada", diz, "tenho amigos estrangeiros que quando vêm é uma das coisas que querem provar". "Acho que vem nos guias ou assim. É curioso..." Teresa Lago apresenta-lhes outras especialidades do Norte, mas ninguém vai embora sem experimentar a francesinha. A dose completa, batatas incluídas. "Acho que a vêem mesmo como típica de cá".
Rui Paula (chef) | DOP
Quando lhe ligámos, o chef Rui Paula não sabe da distinção da francesinha do site AOL Travel, por isso surpreende-se com a coincidência: três dias depois, a francesinha passará a fazer parte do menu do seu (ainda) novo DOP, que se veio juntar ao DOC na "família" do chef. Por estes dias, portanto, quem for ao restaurante na Ribeira encontrará uma francesinha gourmet na carta - "como entrada", ou seja, em "dose contida". Entre outros sabores típicos - como o bacalhau à Gomes de Sá -, esta nova adição é uma forma de "ter gostos da cidade na ementa". E um gosto caro ao chef Rui Paula, que recorda com prazer as francesinhas que comia com a mãe, grande apreciadora, durante o período em que viveu na cidade, quando frequentou o Liceu Alexandre Herculano "entre o 9.º e o 12.º ano".
"Tenho na memória a francesinha de quando vivia no Porto", explica, por isso, quando regressou agora à cidade deu conta de "que em determinados sítios a francesinha está completamente adulterada". A do Gambamar, onde vai regularmente (nem sempre para comer francesinha, que come "de vez em quando"), é "aproximada" dessas do antigamente, "mas não é consistente". A "sua" francesinha tenta resgatar as das cervejarias de antigamente e é, claro, a sua preferida - é feita à sua medida: "É como eu gosto. Quando fazemos o que gostamos, as probabilidades de errar são menores".
O segredo: o "molho muito bem feito" - e para o conseguir são necessárias "quatro a seis horas" - a partir de uma base de "caldo de carne ao natural", a que se juntam "mostarda, cerveja e outras coisas das francesinhas". O resultado será "aveludado", com um "picante suave", para servir "sempre fresquinho e a rolar". Se o segredo está no molho, este não servirá de muito sem o resto: bife do lombo ("altinho, de maneira a que nunca fique seco, selado em azeite de um lado e do outro") e enchidos ("a mais fresca salsicha" e "linguiça caseira de Trás-os-Montes") de "primeiríssima qualidade" ("não primeira", sublinha) - estes últimos, muito finos, "para não se sobreporem, para não ser maçudo" - cozinhados quase "em carpaccio". O acompanhamento no DOP será com batata rosti, "não frita": coze-se com a pele durante 10 minutos para depois ser esfiapada com um ralador de cenoura, misturada com queijo e ervas e ir ao forno num tapete de silicone - o resultado tem aspecto cilíndrico. Tudo compõe um tratamento distinto para um embaixador da gastronomia portuense. "Quando é bem feita, é única".