Francisco Nicholson está a recuperar da operação cirúrgica a que foi submetido para transplante de fígado. É o segundo que faz, sob a coordenação do Doutor Eduardo Barroso
Entrevista a Francisco Nicholson, temporariamente afastado do trabalho por causa do segundo transplante ao fígado
“Não me posso queixar da vida” (COM VÍDEO)
A recuperar do segundo transplante ao fígado, o actor, encenador e autor fala sobre a carreira, a família e a doença que quer ultrapassar rapidamente. Em cena no Teatro Maria Vitória, no Parque Mayer, está a sua mais recente criação, 'Vai de Em@ail a Pior'.
Correio da Manhã - Com uma família ligada às artes, para si não constituiu surpresa o facto de ter sido artista...
Francisco Nicholson - Vamos lá a ver... Fala-se agora muito do meu bisavô, o Quintela, que também é bisavô do José Diogo, a verdade é que eu não tinha ligação com esse mundo. Tanto que quando decidi ir para o teatro os meus pais contrariaram-me. Decidi que queria fazer teatro aos 14 anos, quando estudava no Liceu Camões e comecei a trabalhar com o António Manuel Couto Viana, o ensaiador da Mocidade Portuguesa - que depois fez o Teatro do Gerifalto e a Companhia Nacional de Teatro, e por onde muitos de nós começámos, como o Rui Mendes, o Morais e Castro... Comecei no Teatro da Mocidade Portuguesa. Os meus pais disseram-me: "És actor quando atingires a maioridade. Até lá, nós não autorizamos!" Daí que eu fosse tirar um curso rápido, que tinha a ver comigo porque gosto muito de mar. Fui para a Marinha Mercante. Andei embarcado até aos 21 anos, quando atingi a maioridade. Com aquilo que tinha amealhado, fui tirar um curso em Paris.
- Na Academia Charles Dullin...
- Sim.
- Não fez o Conservatório?
- Essa é outra história. O meu pai faleceu, houve uma série de problemas na minha vida e eu voltei a Portugal. Voltei e resolvi ir para o Conservatório porque havia muitos actores - grandes actores - que nos serviam de trampolim e nos levavam para as companhias. E assim foi. Fui para o Conservatório e estive lá três meses. Ao fim desse tempo fui expulso. Ou melhor, fui suspenso por três anos.
- Por que motivo?
- Um quid pro quo com uma colega minha. Fiz uma piada de mau gosto, uma brejeirice, porque tinha muita confiança com ela, e nessa altura fui alvo de um inquérito terrível. A menina era filha de uma alta patente das forças armadas e de uma senhora muito fina e ela resolveu contar a situação que se tinha passado comigo como se fosse uma coisa muito engraçada. Ela própria achou muita graça - mas o pai não achou graça nenhuma. O pai era um conservador e foi ao Conservatório falar com o director. Achei aquilo tudo muito ridículo, porque não ligava nenhuma a esse tipo de coisas. O Conservatório era tão ridículo que nós, rapazes, éramos obrigados a ir de gravata para as aulas - em Paris íamos de qualquer maneira, era preciso era ir e fazer - e as meninas tinham de levar meias de seda. Não podiam ir de pernas nuas. Saí do Conservatório e nunca mais voltei.
- Mas nunca lhe fez falta?
- Para nada. Entretanto fui falar com o Couto Viana, que me contratou para o Gerifalto. E nunca mais parei.
- Estreou-se no Teatro do Gerifalto numa peça escrita por si. Estreou-se na dupla condição de actor e autor...
- Exactamente. Ele tinha-me metido no Gerifalto como ponto. Disse-me que gostava muito de me contratar, mas que não tinha dinheiro e que precisava era de um ponto. Na altura ainda havia aquelas caixas, onde os pontos se colocavam... Eu queria era entrar. E quando fomos para a leitura da próxima peça, eles não gostaram nada. Acharam que era uma chatice. Eu, que era um puto desenrascado e com uma grande lata, disse-lhes que em 24 horas fazia melhor do que aquilo. O Couto Viana disse que me dava uma semana. "Vais para casa, e daqui a uma semana voltas." Não foi uma semana, foram 48 horas. Escrevi, escrevi, escrevi. Acharam muita graça ao texto, riram-se muito e foi a peça que abriu a temporada. Chamava-se ‘Misterioso Até Mais Não'.
- Percebeu desde logo que ia também enveredar pela escrita?
- Sim, porque eu já escrevia. Comecei a escrever aos 14, 15 anos. Tentativas de peças, de sketches... Sempre gostei muito de escrever.
- Mas se não houve tradição antes, há tradição agora. A Sofia [Nicholson] seguiu-lhes o exemplo...
- É. E a tradição manteve-se de uma maneira que até me divirto com ela. Porque eu também não queria que ela fosse actriz!
- É com alegria ou com preocupação que se recebe a notícia de que um filho quer ser actor?
- A vida de um artista é problemática. Eu costumo dizer que é feita de euforias breves e de angústias longas. Estamos sempre contratados a prazo - agora com a televisão é que há contratos mais longos, mas também acabam rapidamente. Estamos susceptíveis a tudo: se chove, se faz sol, se há crise, se não há crise. É complicado. Claro que eu não tenho razão de queixa. Desde que comecei nunca mais parei de trabalhar - só quando adoeci. A Sofia estava na Air France, desempenhando muito bem o seu papel, quando me anunciou que queria ser actriz, e naturalmente fiquei preocupado. Não a proibi - nem pouco mais ou menos - mas se calhar não lhe dei o apoio que ela merecia. Ela foi por aí fora e hoje está firme e é uma excelente actriz. Sou pai mas sou isento, e reconheço os méritos da Sofia.
- E o neto, Hugo, já manifestou algum interesse pelo teatro?
- Já fez um curso de teatro. Com 12 anos. E acho que vai entrar numa telenovela, com um papel pequenino... E tenho também um neto, que não é bem meu neto, é filho do meu enteado, mas é como se fosse meu neto, e que vai entrar na Escola Profissional de Teatro de Cascais, do Carlos Avilez.
- Vê-se mais como autor, actor ou encenador?
- Gosto das três vertentes do trabalho. Gosto muito de escrever, gosto de representar - se o papel me agrada - e gosto de dirigir, principalmente gente nova. Agora tenho dirigido grandes actores.
- Ao longo da sua carreira passou por grandes companhias de teatro. A Companhia Nacional de Teatro, o Gerifalto, o Teatro Estúdio de Lisboa. Inaugurou o Teatro Villaret com o Raul Solnado... Tem noção de que faz parte da história do teatro português?
- Se calhar faço, mas não tenho grande noção disso. Tenho mais de 50 anos de carreira e realmente passei por tudo isso. Ainda criei o Adoque. Fiz teatro de revista com as jovens estreantes Ivone Silva, Manuela Maria, Irene Cruz e Henriqueta Maia... Escrevi e dirigi essa companhia...
- De todas as pessoas com quem trabalhou, há alguma que recorda com mais carinho?
- Muitas. O Armando Cortez, antes de todos, o meu compadre (é padrinho da Sofia), com quem fiz o programa de televisão ‘Riso e Ritmo'. Era como um irmão. O Solnado. O Nicolau [Breyner]... E o Eugénio Pepe, outro irmão, o primeiro compositor com quem colaborei. As minhas primeiras letras, foram para músicas dele. Eu era um principiante, ele um profissional reputado. Foi fantástico. Há muitas pessoas... O Henrique Santana, a seguir, um encontro inesperado mas muito frutuoso. Eu estava no Adoque, uma companhia considerada de esquerda, e ele no Maria Vitória, de direita. O Hélder Freire Costa sonhou juntar as duas - o que surpreendeu toda a gente. Achavam que nós nos detestávamos. Eu tinha imensa admiração por ele e acho que ele também tinha por mim. De forma que depois de muitas reuniões, quase secretas, quando fui a casa dele, para conversarmos, de cada vez que passava por um objecto - um jarrão, uma terrina - ele dizia-me: "Cuidado. Não deixes cair!" Perguntei-lhe: o que é que se passa? "Nada", disse ele. "Mas se eles lá foram ouvem algum barulho pensam que somos nós a andar à pancada."
- A carreira de letrista também tem sido admirável - escreveu cerca de 300 letras de canções. Acha que as pessoas sabem que escreveu a célebre ‘Oração' para o António Calvário?
- Algumas saberão. Outras não. A canção, tendo sido um desastre na Eurovisão, foi um sucesso cá - e continua a ser. O António continua a cantá-la em todos os espectáculos a que vai. Mas também se não souberem, não é importante. Às vezes nem eu me lembro que a canção que estou a ouvir foi escrita por mim.
- Ganhou três vezes as Marchas de Lisboa. Isso também é importante para si?
- Fi-las por acaso, mas foi importante tê-las feito. Sempre em colaboração, claro. Faz parte da tradição, é uma coisa que está agarrada a Lisboa.
- Parte da sua carreira foi feita antes do 25 de Abril. Sentia-se constrangido?
- Sempre. Havia a censura. No teatro, não havia quem não sonhasse, não digo com o 25 de Abril, mas com qualquer coisa que acabasse com a censura. Porque era um constrangimento muito grande.
- Quando a revolução chegou, estava no Teatro ABC, a fazer a revista ‘Tudo a Nu', de que era autor, encenador e actor. Teve noção de que naquele momento tinha mudado tudo?
- Sim. Viemos para a rua, houve histórias engraçadíssimas. Havia uma grande ingenuidade, uma grande vontade, um grande voluntarismo. O que levou a situações cómicas. Mas foi inesquecível. E então o 1º de Maio, a seguir ao 25 de Abril foi maravilhoso.
- Logo a seguir funda o Teatro Adoque, companhia de revista à portuguesa, onde se lançaram a Ana Bola, a Helena Isabel, Virgílio Castelo, António Feio...
- O José Raposo e muitos mais...
- A revista é, para si, um género teatral maior?
- Considero a revista à portuguesa um género extremamente importante. É um formato que se identifica muito com o nosso povo, um espectáculo eminentemente popular e eu tive provas disso logo a seguir ao 25 de Abril, quando muitos estrangeiros vieram a Portugal - grandes encenadores - para tentar perceber o que isto era. Iam ao Adoque e saiam de lá maravilhados. Inclusivamente o director do Berliner Ensemble. Na altura fazia-se muito Brecht. O entusiasmo dele encheu-nos de orgulho. Éramos muito voluntaristas, estávamos atrás de sonhos e ideais que infelizmente não se concretizaram, mas na altura acreditávamos. E um testemunho de uma pessoa daquelas, que praticava teatro político, teve para nós uma importância fundamental.
- Entretanto, a televisão também tinha aparecido, e esse novo veículo tornou-o muito popular. Programas como o ‘Riso & Ritmo' e, posteriormente, ‘Canto Alegre' tornaram-no uma figura pública. Foi importante para si?
- Adoro fazer televisão. O ‘Riso e Ritmo' foi um formato perfeitamente inovador e ainda hoje gente que o vê diz que era um programa que estava muito à frente. E era feito pelos gloriosos malucos das máquinas de televisão. O Armando Cortez (foi aí que se solidificou a nossa amizade), o Luís Andrade, um realizador todo para a frente... Era uma equipa divertida que gozava de uma liberdade muito grande e passaram-se coisas muito engraçadas. Acabou, abruptamente. Pedimos a uma colega para levar o inspector da censura a beber um café enquanto gravávamos um sketch sobre o Pai Natal em que um operário põe uma meia na chaminé, mas a meia tem um buraco. O mestre de obras põe uma botifarra em baixo e enche a botifarra toda. Aquilo foi para o ar e o tipo ia tendo uma apoplexia. Nunca mais houve ‘Riso e Ritmo'.
- Vida cheia, muito trabalho. Sente que tem o reconhecimento devido por tudo o que fez?
- Não fiz nada para ser reconhecido. Fiz por amor. Não fiz nada à espera de reconhecimento, mas tenho tido algum. Recebi a Medalha de Mérito da Cidade de Lisboa, tive um prémio muito pitoresco - o Prémio Beatriz Costa - que muito me honrou. São coisas gratificantes, mas não foi para isso que fui para actor. Foi para ir fazendo, para construir qualquer coisa. E acho que tenho ajudado a construir muita coisa. Imodestamente.
- É uma pessoa realizada?
- Sim. Não me posso queixar da vida.
- A não ser desse problema de saúde...
- O transplante, sim. O doutor Eduardo Barroso e Manuela Morbey chamaram-me há dois meses e aconselharam-me, em função dos exames que fiz, a fazer um novo transplante. Eu, pela admiração e pela consideração que tenho por eles, disse logo que sim. Mas sou um optimista por natureza e espero que isto se resolva pelo melhor. Sei que estou em boas mãos.
- Nesta fase, a Magda, com quem já se casou duas vezes, tem sido uma companhia imprescindível?
- Se calhar volto a casar-me uma terceira vez, logo que isto passe... A Magda é uma companheira excepcional, para além de ser uma mulher extraordinária. É uma artista, bailarina com vários prémios, coreógrafa, cenógrafa, figurinista... Actriz, que entrou em várias novelas e programas de humor. É, para além disso, uma companheira única. Não tenho a certeza de merecer uma pessoa assim. Reconheço que tinha uma vida muito agitada, era um boémio militante, eu e colegas do teatro - o que aliás me ajudou a dar cabo do fígado - e depois encontrei a Magda e foi realmente uma coisa muito boa para a minha vida. Tem-me ajudado imenso nesta fase e ela tem sofrido imenso com tudo isto. E tenho a minha filha, os meus enteados, a minha família e os meus amigos. Têm sido um grande apoio. É muito bom ter amigos e família. Torna as coisas mais simples. Mais justificadas. Justifica lutarmos para estarmos vivos.
- E continua a escrever?
- Continuo. Já tenho uma série de rábulas escritas para uma hipotética revista para a qual espero vir a ser convidado. Não sei se o Hélder Freire Costa me convida, mas logo se vê.
- A vida só acaba quando acaba?
- É é. A vida é para ser vivida, não morrida.