Faltam poucos minutos para as seis da tarde e chove a potes. A porta amarela da associação Refood está fechada a cadeado, e não se vê ninguém nestas traseiras da Igreja de Fátima, junto à Avenida de Berna, em Lisboa. Parece que nada vai acontecer. Até que chega uma senhora, que pergunta se ainda ninguém abriu a porta. Não, respondemos, até agora ninguém.
Passam alguns minutos e aparece a responsável, que traz a chave. A porta abre-se, e, agitando chapéus-de-chuva e sacudindo capas encharcadas, os voluntários começam a materializar-se. Às seis e meia o lugar está irreconhecível, cheio de gente que, liberta de casacos e malas, começa o trabalho. Percebe-se que há uma máquina bem oleada, e que cada um sabe exactamente o que tem que fazer.
Este foi o primeiro núcleo da Refood, a associação criada em 2011 por Hunter Halder, o norte-americano a viver em Portugal há 20 anos e que um dia se perguntou porque é que havia gente com fome e restaurantes a deitar fora comida, e decidiu fazer alguma coisa em relação a isso. Hunter combinou encontrar-se com a Revista 2 neste local, mas enquanto ele não chega vamos tentando perceber como se organizam as coisas por aqui.
Os voluntários, que trabalham cada um duas horas por semana e geralmente têm dias fixos, dividem-se em equipas. Em breve vão chegar os que irão fazer a recolha nos cafés e pastelarias (a primeira ronda é nos locais que fecham entre as 19h e as 20h, a segunda, mais tarde, é pelos restaurantes). Os que chegaram primeiro são os que estão encarregues da organização da comida recebida. Nas paredes há quadros com os nomes e número de adultos e crianças de cada família beneficiária que há-de vir buscar os sacos.
Os voluntários já conhecem bem os hábitos de cada um, e recentemente começaram mesmo a anotar o que levou cada família nos dias anteriores, para não haver repetição. Uma das voluntárias explica que, nesta zona de Lisboa, recolhem-se muitas sobras de comida dos buffets chineses, por exemplo, e que é preciso ter o cuidado de não mandar comida chinesa para a mesma família todos os dias. Assim, atentos a estas coisas, vão enchendo caixas com sopa, um prato principal, pão, bolos. Os sacos vão-se alinhando, com os números respectivos, num banco corrido junto à entrada.
Como a recolha ainda não começou, as primeiras refeições são preparadas com o que se recolheu nos restaurantes na madrugada anterior, e que ficou guardado nos frigoríficos da Refood, sempre com uma etiqueta colorida que identifica o dia. No meio desta azáfama chega Hunter, bem disposto, armado com o seu computador, e o inevitável chapéu branco que fez dele, como o próprio diz, uma
“figura icónica”.
Se calhar, a Refood não seria o sucesso que é hoje se Hunter não fosse Hunter. Assim, quem resistiria à história de um americano de chapéu branco montado numa bicicleta a recolher a comida que sobrava nos restaurantes da sua zona e a dá-la a quem precisava dela? Bom, os jornais, as revistas e as televisões não resistiram. Mas no início, quando a
“figura icónica” começou a bater às portas, nem tudo foi assim tão fácil.
“Comecei a estudar a zona e encontrei 285 potenciais doadores”, conta. “Pensei ‘como vou fazer isto, de bicicleta?’ Não vou. Então comecei a cortar, a reduzir o tamanho da área, mas ainda não era possível e cortei mais, até que fiquei com sete quarteirões e 45 fontes de alimentos. Vi as horas de fecho, dividi em dois turnos, e disse
‘é possível’”.
Só depois começou a contactar os cafés e restaurantes. Dos 45, 30 acabaram por dizer que sim. ??Primeiro falei com o Carlos, da pastelaria em frente a minha casa, e perguntei
‘olha lá, ao fim do dia tens coisas que sobram, que vão para o lixo?’, ele disse que tinha muito pouco, sopa, pão, alguns bolos, mas nunca sobras do almoço. E eu disse
‘se passar aqui ao fim do dia, dás-me o que sobra?’,
ele disse que sim mas que era pouco.” Conquistada a primeira porta, seguiu para as outras.
“Há sempre objecções, porque é uma mudança e ninguém gosta de mudanças, é preciso ser-se chato e persistente, e eu sou as duas coisas”. Dá uma gargalhada. Muitos argumentavam que sobrava pouco e que não valia a pena. Mas Hunter não se deixava convencer.
“Vale a pena sim senhor, a gente só quer mesmo a comida que vai para o lixo, e se passarmos ao final do dia e não tiver nada, parabéns, é porque vendeu tudo.” No final, os tais 30 deixaram-se convencer.
Hunter Halde, o fundador da Refood, no núcleo inicial, na Igreja de Fátima
Depois foi à Igreja, falou com o prior, perguntou se distribuíam comida a quem precisava e se tinham suficiente. O prior disse que nem sempre chegava e que aceitava a que ele trouxesse, mas no início não quis que o americano do chapéu instalasse frigoríficos nas instalações da igreja. E, por isso, as coisas começaram de uma forma um pouco louca. Hunter pegava na bicicleta, fazia a primeira ronda pelos cafés, e distribuía essa comida por um núcleo de famílias. Quando terminava estava na altura de começar a segunda ronda, agora pelos restaurantes. No final, pela meia-noite, era preciso voltar para casa, levar pelas escadas acima a comida recolhida, guardar no seu frigorífico, para no dia seguinte trazê-la para baixo outra vez, voltar a pô-la na bicicleta e levá-la à igreja.
“Era muito chato e estúpido. Eu olhava para as caixas e pensava ‘já vi esta comida ontem’.” Mas ao fim de um mês, o prior deixou instalar os frigoríficos na igreja e as coisas melhoraram muito.
Entretanto, o núcleo inicial do Refood (o nome foi uma ideia do filho de Hunter, Christopher Halder, co-fundador) começou a crescer. Ao fim de seis meses havia 30 voluntários a percorrer os sete quarteirões, e o projecto já começava a chamar a atenção. Mas o grande salto aconteceu quando ganhou o prémio Voluntariado Jovem do Montepio, no valor de 25 mil euros.
“Sabia que com o prémio vinha a atenção da comunicação social”, afirma Hunter.
“Mas não sabia era que não parava. Vinham de todo o lado, da Alemanha, de Espanha, e até hoje não parou.”
Interrompemos a conversa para sairmos para a rua, acompanhando Miguel e Henrique, dois alunos do Instituto Superior Técnico, vindos de fora de Lisboa, e que procuravam alguma coisa útil para fazer quando alguém lhes falou no Refood. Capas para a chuva, sacos isotérmicos, um chapéu-de-chuva, e avançamos para o meio do dilúvio, percorrendo, a passo quase de corrida, as ruas em torno da Igreja de Fátima.
Os cafés estão quase a fechar as portas, e já têm as coisas prontas para os voluntários: geralmente sobra um pouco de sopa, às vezes alguma comida dos pratos do dia, mas sempre alguns bolos e pão. O processo é fácil e rápido. Miguel e Henrique tiram do carrinho isotérmico os recipientes, os donos dos cafés enchem-nos de comida, eles voltam a guardá-los, despedem-se e seguem caminho.