Thursday, 20 January 2011

A HISTÓRIA DELE DAVA UM FILME...TRÁGICO

Por Nuno Cardoso/Foto João Girão / Global Imagens

Carlos Castro conheceu de perto o mundo da violência. O pai bateu-lhe durante anos consecutivos e foi vítima de múltiplas violações sexuais. Solitário e revoltado, assim se definia.

"Sou a pessoa mais feliz do mundo mesmo com os meus fantasmas." O discurso não engana. Aos 65 anos era um homem realizado, mas que no entanto nunca esqueceu os momentos mais negros por que passou. Homem solitário, carente e revoltado, assim se confessava. A vida assim o ensinou a ser. O pai assim o ensinou a ser.

Violações e abusos em criança

Carlos Castro nasceu em 1945, na antiga cidade de Moçâmedes, em Angola. Ainda criança, rapidamente percebeu a sua homossexualidade e "feminilidade fora do normal" [preferia ler livros a jogar à bola, por exemplo]. "Se preferia ser homo ou heterossexual? Preferia ser quem sou. Não me arrependo de nada", dizia, em Junho de 2007, numa sincera entrevista ao jornal Sol.

Cresceu no seio de uma família conservadora, com posses limitadas. O pai era pescador, a mãe doceira. Castro tinha seis irmãos, três de cada género. Em casa, orientação sexual do cronista desde cedo desencadeou vários comportamentos violentos e agressivos. O pai batia-lhe e tinha com o pequeno Carlos uma relação de "ódio". "Era extremamente mau. Batia-me e amarrava-me a uma mesa durante horas infinitas para que não saísse de casa. O meu pai era rude e sem cultura. Dizia que eu tinha de ir aos médicos", afirmou o comentador do mundo cor-de-rosa numa das últimas entrevistas.

Vítima de agressões físicas e emocionais constantes, a mãe e as irmãs não o conseguiam proteger, com medo do pai. O irmão mais velho, com quem perdeu contacto mais tarde, repetia o comportamento do pai. "Lembro-me de ter 6 anos e ser violado [à força, com penetração] por um vizinho de 20. Entre as pessoas que assistiram estava o meu irmão mais velho. Nada fez para me defender", frisou.

Além disso, fora de casa, Carlos Castro chegou a ser assediado sexualmente por um professor na segunda classe e até por um padre, quando frequentava a catequese. "Grande parte da revolta e mágoa que sinto tem que ver com a infância que me roubaram", confessou o jornalista na mesma entrevista.

A vida durante a guerra colonial... e na prisão

Aos 17 anos ganha coragem e parte para Luanda, para fugir da cidade que o viu nascer e dos abusos do pai. Começou do zero, hospedado em casa de um militar com quem trocava cartas e com quem manteve um curto namoro. "Não senti a guerra em Luanda. Vi espectáculos extraordinários. Fiquei fascinado com aquela cidade cosmopolita e cheia de vida", disse Carlos Castro.

Um ano depois volta a Moçâmedes, onde é chamado para comparecer à inspecção militar. Faz a recruta e é destacado para a guerra, na zona de São Salvador do Congo, no Norte de Angola. "Ia buscar o correio, cozinhava..." Protegido pelas equipas [era a "mascote"], chegou a iniciar namoros com colegas. "80% dos homens eram homossexuais. Faziam festas de transformismo e tudo. Foi uma loucura", contou.

Pouco tempo depois, já depois da morte do pai, é preso por ir visitar a sua terra natal e não comparecer em Luanda para continuar a vida militar. Ficou detido durante um mês num quartel na capital angolana. Foi violado "dez, 12 vezes". Sempre pelo mesmo prisioneiro. "Um psicopata com 90 quilos do qual todos tinham medo", disse.

Vida do zero, em Lisboa, "foi um horror"

Carlos Castro seguiu o seu caminho e antes da independência, em 1975, deixa Luanda e tenta recomeçar do zero, em Lisboa. Não trouxe nada consigo. "Ficaram-me com tudo no aeroporto." Só um mês depois reencontrou a mãe e as irmãs, que também tinham vindo para a capital portuguesa.

Enquanto as procurou, "foi um horror", frisou. "Dormi na rua, passei o Natal sozinho, lavei escadas, bati à porta de pessoas", disse. Foi também nessa altura que se iniciou no transformismo. "Era um travesti cómico, com números de humor. A imitação que fiz da Maria de Lourdes Pintasilgo foi um sucesso."

A ligação ao mundo do transformismo continuou, não nas actuações, mas sendo Carlos Castro o padrinho do evento anual da Gala dos Travestis.

A sua imitação da então primeira-ministra foi de tal forma um sucesso no meio lisboeta que Carlos acabou por ser convidado para escrever para a revista Nova Gente. Começava aqui a sua carreira no jornalismo, que manteve até aos últimos dias.

Pelo caminho, colaborou com vários jornais e revistas nacionais, tornando-se no maior cronista português do social. A primeira entrevista que fez, essa, foi a Simone de Oliveira, com quem manteve uma relação de amizade até aos últimos dias.

Tinha uma estreita ligação com a escrita. Carlos Castro sempre mostrou, desde criança, preferência pela leitura e escrita de textos. Escrevia poemas para artistas, ainda jovem. Escrevia cartas de apoio às tropas militares que andavam na guerra. E ganhou o Festival da Canção de Luanda, em 1972, pela autoria do tema vencedor Feitiço de Tinta, interpretado por Carlos Miguel. Tinha 27 anos. Dedicou o prémio à cidade onde nasceu e sofreu. "Foi a minha vingança", adianta.

O amor da sua vida também o deixou

Homem de poucas mas intensas paixões, foi nos anos 80 que conheceu o amor da sua vida, com quem namorou largos anos. "Viajámos pelo mundo inteiro. Ao seu lado, deslumbrei-me com países e povos. Por ele fiz tudo o que era possível fazer." O então namorado de Carlos Castro, que vivia uma vida dupla, acabou por terminar a relação após ameaças da sua mulher e filhos. "Foi um afastamento muito violento", frisou.

Um homem estreitamente ligado ao mundo do jet set. Muita gente durante o dia, pouca na hora de deitar. "Sou um homem só. Dou-me com muita gente, mas vou sozinho para casa", disse. Condição que acabou por servir de inspiração para o título da sua autobiografia, lançada no final de 2007, Solidão Povoada.

Renato Seabra, 21 anos, foi o último namorado. Aos amigos próximos confessou estar "feliz e apaixonado".

A morte da mãe

A morte da sua mãe, aos 94 anos, em 2003, vítima de Alzheimer, marcou para sempre o jornalista. "Quando lhe explicava que era seu filho, ela dizia-me: 'Muito prazer em conhecê-lo'. Se me acontecesse o mesmo, suicidava-me. Fá-lo-ia, para não magoar ninguém", admitiu.

Em 2007, o cronista social parecia adivinhar um final de vida antecipado. "Penso que o meu tempo de vida está a acabar. É algo que sinto. Tenho a certeza absoluta de que o fim está próximo. Tenho noção de que muita gente por esse país fora irá deitar uma lágrima e dizer que morreu um grande homem", afirmou Castro numa entrevista, nesse ano.

http://www.jn.pt/revistas/ntv/interior.aspx?content_id=1755342

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