Teatro
Daniel Radcliffe. O feitiço da Broadway
Depois de Harry Potter, o actor arrisca-se em novos palcos para provar que "um actor criança pode ter futuro"
O tipo de 21 anos mais famoso do planeta entrou numa correria num pequeno restaurante de West Village numa manhã fria de Fevereiro, com um apetite ávido de waffles. Tinha olheiras, um aspecto desmazelado e a barba por fazer, mas parecia cheio de energia, apesar da hora matinal, e um pouco esbaforido, por ter vindo a correr do restaurante anteriormente escolhido, que estava fechado por causa de uma fuga de gás. Falou-nos dos seus percalços matinais - "Estavam a ver se me matavam, não estavam?", disse, entre sorrisos - para depois morfar o pequeno-almoço que havia de lhe dar energia para os longos ensaios para o musical da Broadway que se prepara para estrear.
É justo dizer que Daniel Radcliffe - que está prestes a começar a colher os benefícios de uma década no corpo de Harry Potter, ao assumir o papel principal na adaptação ao palco de "How to Succeed in Business Without Really Trying" - não teve uma adolescência semelhante à de nenhuma outra estrela jovem nem veio a tornar-se a pessoa que toda a gente esperava. Não há dúvida que o êxito dos filmes da série "Harry Potter", adaptados das histórias de J. K. Rowling e que tiveram um resultado bruto de mais de 4,5 mil milhões de euros em todo o mundo, estiveram na base de um reconhecimento sem precedentes e também de uma fortuna para Radcliffe. Diz-se que terá ganho cerca de 15 milhões por cada um dos dois últimos filmes e provavelmente é mais rico que os príncipes William e Harry (compatriotas que não tiveram de conquistar a sua posição matando basiliscos ou destruindo Horcruxes).
O que Radcliffe parece não ter é a arrogância ou a petulância que costumam acompanhar este nível de fama e fortuna. Tem amor-próprio mas não é egocêntrico. Inquieto e atento, considera-se descontraído e um pouco excêntrico.
No entanto, quando a conversa salta para a sua carreira - que entra em território desconhecido quando o oitavo e último filme da série "Harry Potter" for lançado, em Julho -, Radcliffe fala quase com solenidade. Ao mesmo tempo que explica por que razão decidiu dizer adeus à sua querida personagem de rapaz-feiticeiro com uma sátira com 50 anos ao mundo da América corporativa, fala com uma sinceridade quase religiosa da sua necessidade de "provar que um actor criança pode ter futuro". "Se eu conseguir mesmo fazê-lo", diz Radcliffe em relação à sua última aventura nos palcos, "depois de ter estado envolvido numa das sagas mais longas e bem-sucedidas de sempre, isto pode pôr um fim ao debate."
Coreografias A estreia de "How to Succeed" está marcada para 27 de Março no Al Hirschfeld Theater, no que não será a sua primeira aventura na Broadway. A sua estreia deu-se com o drama psicológico "Equus", de Peter Shaffer, uma produção do Gielgud Theater, em Londres, em 2008, mais tarde transferida para Nova Iorque. A sua interpretação de um jovem perturbado, Alan Strang, um papel em que por breves instantes tem de aparecer nu, atraiu público e obteve a aprovação da crítica. No "The New York Times", Ben Brantley escreveu que Radcliffe usou o papel como se tivesse sido feito de encomenda para ele, mas com pano para mangas.
Dessa experiência embrional, Radcliffe conservou boas recordações da cena teatral nova-iorquina e, num plano mais prático, as lições de canto de que precisou para cantar um jingle em "Equus". Começou a correr que não tinha aprendido a cantar só para aquele público, que as suas ambições podiam ser maiores.
Numa reunião com Craig Zadan e Neil Meron (produtores de "How To Succeed"), Radcliffe confessou que não tinha a certeza de ter a preparação necessária para participar num musical da Broadway. Quando foi abordado, noutra ocasião, pelo encenador e coreógrafo Rob Ashford, que anunciou que lhe queria apresentar um desafio triplo, Radcliffe recorda: "Eu ainda lhe disse: ''Está bem, eu faço um curso de dança, mas olhe que está a remar contra a maré, Mr. Ashford."
A equipa depressa se pôs de acordo em fazer "How to Succeed", um musical premiado com um Pulitzer (com música de Frank Loesser e letras de Abe Burrows, Jack Weinstock e Willie Gilbert) acerca de J. Pierrepont Finch, um fura-vidas que começa como lavador de janelas e acaba como presidente da administração da World Wide Wicket Company.
Trata-se, dizem os produtores, de um musical popular, com uma história irrepreensível - Robert Morse fez o papel de Finch na produção original da Broadway e no filme de 1967, o mesmo que Matthew Broderick interpretou numa nova produção de 1995 -, além de ter a característica rara de assentar num protagonista jovem do sexo masculino. Tratava-se, percebeu Radcliffe, de um projecto muito estranho para ele. "Tenho a impressão que muitas pessoas vão achar a escolha um pouco confusa", diz, "mas isso agrada-me."
O facto de até hoje pouco ter cantado e nunca ter dançado ou falado com sotaque americano são os únicos obstáculos, que pode vencer com alguma preparação. O que pode revelar-se mais difícil de ultrapassar é tratar-se de um musical um tanto datado. Apesar de todo o seu encanto, "How to Succeed" é o produto da era em que foi criado, em que os homens tinham à frente a perspectiva da ascensão corporativa, enquanto as mulheres estavam limitadas ao papel de dactilógrafas e secretárias. O comentário mais profundo em matéria de igualdade de direitos é "Uma secretária não é um brinquedo".
Previsões Num ensaio recente de "How to Succeed", nos novos estúdios da Rua 42, Radcliffe não teve dificuldade em acompanhar os companheiros, mais experientes. Sob o olhar de Ashford e de Spencer Soloman, um professor de dança que trabalhou individualmente com Radcliffe em Londres, o elenco ensaiava "Brotherhood of Man", o penúltimo número do musical.
Radcliffe não recuava perante qualquer pirueta, cambalhota ou reviravolta à la Bob Fosse, e com alguma ajuda atirou-se de uma mesa corrida para ser agarrado pelos companheiros de cena. No entanto, a diferença de estatura entre o pequeno actor de 1,65 m e os restantes actores - entre eles o co-protagonista, John Larroquette, de 1,94, que interpreta o patrão da Wicket, J. B. Biggley - eclipsa-o completamente no palco. Depois de recuperar do esforço, Radcliffe disse-nos que esperava que a paixão que está a pôr no esforço fosse suficiente para compensar qualquer insuficiência."Se formos suficientemente entusiásticos em relação a alguma coisa - mesmo que não sejamos bons -, o nosso entusiasmo acaba por levar os outros a permitir que o façamos tempo suficiente para nos tornarmos bons nisso", disse ainda.
Nada disto explica por que razão Radcliffe escolheu este projecto particular para canalizar o seu excesso de energia pós-Potter numa altura em que o aguarda ainda uma vida inteira de trabalho. Quando lhe pedimos exemplos de actores cujo caminho gostasse de seguir, falou de vários que sobreviveram a carreiras começadas na infância, de Christian Bale a Elijah Wood ou ao seu amigo e mentor Gary Oldman, o actor camaleónico que interpreta o feiticeiro Sirius Black nos filmes da série "Potter".
David Yates, que dirigiu Radcliffe nos últimos quatro filmes da série, incluindo o último, a segunda parte de "Harry Potter e os Talismãs da Morte", afirmou que, apesar da celebridade desmedida de Radcliffe, "ele está mais à vontade integrado numa equipa", quer se trate de limpar o cenário depois de uma noite de filmagens quer de participar num simples musical da Broadway. "A maneira como ele decidiu lidar com o assunto", diz Yates com uma gargalhada, "foi fingir que é uma pessoa normal e dançar como os outros todos."
Baixando a guarda por momentos, Radcliffe confessa-se ansioso por saber como vai ser recebido em "How to Succeed". Perguntei-lhe especificamente o que o deixa nervoso. Respondeu-me em rajada: "Medo do fracasso. Medo da mediocridade. Medo de não alcançar os meus objectivos. Medo de falhar uma missão..."
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